Chamados a entrar na Aliança com Deus
22. Ao sublinhar a pluralidade de formas da Palavra, pudemos ver através de quantas
modalidades Deus fala e vem ao encontro do homem, dando-Se a conhecer no
diálogo. É certo que o diálogo, como afirmaram os Padres sinodais, «quando se refere à Revelação comporta o primado da Palavra de Deus
dirigida ao homem».[71] O
mistério da Aliança exprime esta relação entre Deus que chama através da sua
Palavra e o homem que responde, sabendo claramente que não se trata de um
encontro entre dois contraentes iguais; aquilo que designamos por Antiga e Nova
Aliança não é um acto de entendimento entre duas partes iguais, mas puro dom de
Deus. Por meio deste dom do seu amor, Ele, superando toda a distância,
torna--nos verdadeiramente seus «parceiros», de modo a realizar o mistério nupcial do amor entre Cristo e a Igreja. Nesta
perspectiva, todo o homem aparece como o destinatário da Palavra, interpelado e
chamado a entrar, por uma resposta livre, em tal diálogo de amor. Assim Deus
torna cada um de nós capaz de escutar e responder à Palavra divina. O
homem é criado na Palavra e vive nela; e não se pode compreender a si mesmo, se
não se abre a este diálogo. A Palavra de Deus revela a natureza filial e
relacional da nossa vida. Por graça, somos verdadeiramente chamados a
configurar-nos com Cristo, o Filho do Pai, e a ser transformados n’Ele.
Deus escuta o homem e responde às suas perguntas
23. Neste diálogo com Deus, compreendemo-nos a nós mesmos e encontramos resposta para as perguntas mais profundas que
habitam no
nosso coração. De facto, a Palavra de Deus não se contrapõe ao homem, nem
mortifica os seus anseios verdadeiros; pelo contrário, ilumina-os, purifica-os e
realiza-os. Como é importante, para o nosso tempo, descobrir que só Deus
responde à sede que está no coração de cada homem! Infelizmente na nossa
época, sobretudo no Ocidente, difundiu-se a ideia de que Deus é alheio à vida e
aos problemas do homem; pior ainda, de que a sua presença pode até ser uma
ameaça à autonomia humana. Na realidade, toda a economia da salvação mostra-nos
que Deus fala e intervém na história a favor do homem e da sua salvação
integral. Por conseguinte é decisivo, do ponto de vista pastoral, apresentar a
Palavra de Deus na sua capacidade de dialogar com os problemas que o homem deve
enfrentar na vida diária. Jesus apresenta-Se-nos precisamente como Aquele que veio para que
pudéssemos ter a vida em abundância (cf. Jo 10, 10). Por isso, devemos
fazer todo o esforço para mostrar a Palavra de Deus precisamente como abertura
aos próprios problemas, como resposta às próprias perguntas, uma dilatação dos
próprios valores e, conjuntamente, uma satisfação das próprias aspirações. A
pastoral da Igreja deve ilustrar claramente como Deus ouve a necessidade do
homem e o seu apelo. São Boaventura afirma no Breviloquium: «O fruto da Sagrada Escritura não é um fruto qualquer, mas a plenitude da
felicidade eterna. De facto, a Sagrada Escritura é precisamente o livro no qual
estão escritas palavras de vida eterna, porque não só acreditamos mas também
possuímos a vida eterna, em que veremos, amaremos e serão realizados todos os
nossos desejos».[72]
Dialogar com Deus através das suas palavras
24. A Palavra divina introduz cada um de nós no diálogo com o Senhor: o Deus que
fala, ensina-nos como podemos falar com Ele. Espontaneamente o pensamento
detém-se no Livro dos Salmos, onde Ele nos fornece as palavras com que
podemos dirigir-nos a Ele, levar a nossa vida para o colóquio com Ele,
transformando assim a própria vida num movimento para Deus.[73]
De facto, nos Salmos, encontramos articulada toda a gama de sentimentos que o
homem pode ter na sua própria existência e que são sapientemente colocados
diante de Deus; alegria e sofrimento, angústia e esperança, medo e perplexidade
encontram lá a sua expressão. E, juntamente com os Salmos, pensamos também em
numerosos textos da Sagrada Escritura que apresentam o homem a dirigir-se a Deus
sob a forma de oração de intercessão (cf. Ex 33, 12-16), de canto de
júbilo pela vitória (cf. Ex 15), ou de lamento no desempenho da própria
missão (cf. Jr 20, 7-18). Deste modo, a palavra que o homem dirige a Deus
torna-se também Palavra de Deus, como confirmação do carácter dialógico de toda
a revelação cristã,[74]
e a existência inteira do homem torna-se um diálogo com Deus que fala e escuta,
que chama e dinamiza a nossa vida. Aqui a Palavra de Deus revela que toda a
existência do homem está sob o chamamento divino.[75]
A Palavra de Deus e a fé
25. «A Deus que Se revela é devida “a obediência da fé” (Rm 16, 26; cf. Rm
1, 5; 2 Cor 10, 5-6); pela fé, o homem entrega-se total e livremente a
Deus oferecendo a Deus revelador “o obséquio pleno da inteligência e da vontade”
e prestando voluntário assentimento à sua revelação».[76] Com
estas palavras, a Constituição dogmática
Dei Verbum exprimiu de modo
claro a atitude do homem diante de Deus. A resposta própria do homem a Deus,
que fala, é a fé. Isto coloca em evidência que, «para acolher a Revelação, o homem deve abrir a mente e o coração à acção do
Espírito Santo que lhe faz compreender a Palavra de Deus presente nas Sagradas
Escrituras».[77] De
facto, é precisamente a pregação da Palavra divina que faz surgir a fé, pela
qual aderimos de coração à verdade que nos foi revelada e entregamos todo o
nosso ser a Cristo: «A fé vem da pregação, e a pregação pela palavra de Cristo» (Rm 10, 17). Toda a história da salvação nos mostra progressivamente
esta ligação íntima entre a Palavra de Deus e a fé que se realiza no encontro
com Cristo. De facto, com Ele a fé toma a forma de encontro com uma Pessoa à
qual se confia a própria vida. Cristo Jesus continua hoje presente, na história,
no seu corpo que é a Igreja; por isso, o acto da nossa fé é um acto
simultaneamente pessoal e eclesial.
O pecado como não escuta da Palavra de Deus
26. A Palavra de Deus revela inevitavelmente também a dramática possibilidade que
tem a liberdade do homem de subtrair-se a este diálogo de aliança com Deus, para
o qual fomos criados. De facto, a Palavra divina desvenda também o pecado que
habita no coração do homem. Muitas vezes encontramos, tanto no Antigo como no
Novo Testamento, a descrição do pecado como não escuta da Palavra, como
ruptura da Aliança e, consequentemente, como fechar-se a Deus que chama à
comunhão com Ele.[78]
Com efeito, a Sagrada Escritura mostra-nos como o pecado do homem é
essencialmente desobediência e «não escuta». Precisamente a obediência radical de Jesus até à morte de Cruz (cf. Fl
2, 8) desmascara totalmente este pecado. Na sua obediência, realiza-se a Nova
Aliança entre Deus e o homem e é-nos concedida a possibilidade da reconciliação.
De facto, Jesus foi mandado pelo Pai como vítima de expiação pelos nossos
pecados e pelos do mundo inteiro (cf. 1 Jo 2, 2; 4, 10; Hb 7, 27).
Assim, é-nos oferecida misericordiosamente a possibilidade da redenção e o
início de uma vida nova em Cristo. Por isso, é importante que os fiéis sejam
educados a reconhecer a raiz do pecado na não escuta da Palavra do Senhor e a
acolher em Jesus, Verbo de Deus, o perdão que nos abre à salvação.
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA VERBUM DOMINI (BENTO XVI)
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