Tradicionalmente, o último domingo do ano litúrgico (Cristo-Rei)
fala da consumação escatológica do mundo e da História. No ano A, o
texto central era a parábola do último juízo, de Mt 25. Neste ano B,
ano do evangelista Mc, o evangelho do último domingo é tomado não de
Mc, mas de Jo, que fornece uma espécie de “comentário teológico” a Mc.
Pois, enquanto Mc descreve Jesus como o Enviado de Deus manifestando-se
de modo velado, Jo coloca a figura de Jesus na plena luz da glória
divina, que nele se manifesta. Assim, podemos ler em Jo com clareza o
que em Mc fica subjacente. Mc “esconde” o caráter messiânico de Jesus,
porque, de fato, o mundo se decepcionou, por não enxergar seu Reino.
Jo, pelo contrário, afirma claramente que Cristo é Rei, mas explica
também que seu Reino não é deste mundo (não pertence a homens fechados
na sua auto-suficiência), e sim, o Reino do testemunho da verdade, que
é Deus, Deus revelando-se em Jesus, na morte por amor. Pois é na sombra
da cruz que Jesus identifica seu Reino com o testemunho da verdade. É
na cruz que Jesus é, por excelência, a “Testemunha Fiel”, o “Rei dos
reis” (2ª leitura). E Pilatos, alheio às preocupações de Jesus, sem o
querer as confirma, exigindo com insistência que se coloque na cruz de
Jesus o título: “Rei dos judeus”.
A 1ª leitura prepara-nos para a idéia de um reino transcendente, que
não pertence aos homens, mas a Deus. Numa visão, Daniel vê quatro
feras, que se entredevoram: imagem adequada para descrever as relações
entre os impérios deste mundo. Dn pensa nos assírios, babilônios,
persas e sírios (o livro foi escrito durante o governo do rei sírio
Antíoco Epífanes, perseguidor dos judeus na crise dos Macabeus). Mas
poderíamos imaginar os impérios de hoje perfeitamente com as mesmas
figuras, mesmo se estes impérios já não dependem de imperadores e sim
de magnatas. No fim, porém, todos eles serão vencidos por uma figura de
feições humanas “como que um filho de homens”, um ser humano; e este
representa os “Santos do Altíssimo”, a corte celestial, os servidores
de Deus (modo de imaginar uma intervenção de Deus mesmo; o judaísmo
rodeou Deus de intermediários, pois não podia haver contato direto
entre Deus e os homens). O “Filho do Homem”, em Dn, representa Deus
mesmo. A ele pertencem o Poder, a Glória, o Juízo: ele tem a última
palavra sobre o mundo e a História.
No N.T., o título de Filho do Homem é dado a Jesus. Este não se
inscreve num “messianismo qualquer”. Sua missão é realmente
transcendente, traz Deus presente, como última palavra de nossa
existência e da História. Isso se confirma tanto pela parábola do
último juízo (Cristo Rei/A) quanto pelo diálogo entre Jesus e Pilatos
no evangelho de hoje. O Reino que Cristo instaura é muito diferente dos
“reinos deste mundo”. Não que o Reino de Cristo seja alheio a este
mundo. Está dentro dele, firmemente arraigado. Mas não pertence aos
homens, porém a Deus. No Reino de Cristo, ninguém tem a última palavra
sobre os outros, mas, pelo contrário, todos estão a serviço dos outros
no amor e na doação. Quanto mais se desenvolvem estas atitudes, tanto
mais realiza-se o Reino da Verdade e do Amor. Quanto mais o homem
organiza seu mundo num instrumento de fraterno amor, em vez de
opressão, tanto mais resplandece a face de Deus, que nos é possível
identificar a partir da cruz de Cristo. Portanto, que o Reino de Jesus
não é deste mundo, não significa que seus “súditos” não o precisam
implantar neste mundo.
Quanto aos impérios deste mundo, se não acreditamos a lição da
História, que ensina que todos eles se corrompem por dentro,
acreditemos pelo menos na mensagem de Dn: em última instância, estão
submissos ao juízo de Deus. Nenhum deles determinará definitivamente a
História. Mas, entretanto, oprimem a humanidade. De fato, se o nosso
horizonte não superar os nossos limites bio-psicológicos, materiais,
não tem muito sentido dizer que Deus tem “afinal” a última palavra.
Porém, se acreditarmos naquilo que o evangelho de João diz do início
até o fim – que devemos viver desde já uma vida além da dimensão
“carnal” -, então encontraremos, na visão escatológica apresentada
hoje, uma força para não nos entregar ao jogo dos poderes deste mundo,
pois saberemos que eles não são decisivos. Quem for mesmo
“materialista” não resistirá à tentação de se entregar a algum destes
impérios, fazendo dele o todo de sua vida. Mas aquele que se entregar
ao Reino da Verdade, que se manifesta no Cristo crucificado, terá a
força de pôr o domínio material a serviço deste Reino, que não pertence
a homem algum, mas faz as pessoas se pertencerem mutuamente no amor.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
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