A liturgia de hoje nos concede uma espiadinha no céu: Jesus revela sua
glória diante de seus discípulos (evangelho). Devemos situar esta visão
no contexto que Mc criou ao conceber a estrutura fundamental dos
evangelhos escritos. Na primeira parte de sua atividade, Jesus se
dirige às multidões mediante sinais e ensinamentos, que deixam
transparecer sua “autoridade” (cf. primeiros domingos do T.C.), mas não
dizem nada sobre seu mistério interior. Na segunda metade (a partir de
8,27; cf. 24° dom. T.C.), Jesus revela – não à multidão, mas aos Doze,
futuras testemunhas de sua missão – seu mistério interior: sua missão
de Servo Padecente (melhor, Filho do Homem padecente) e sua união com o
Pai, O que foi confiado a Jesus pessoalmente, pelo Pai, na hora do
Batismo, quando a “voz da nuvem” lhe revelou: “Tu és meu filho amado,
no qual está meu agrado” (Me 1,11), é agora revelado aos discípulos:
“Este é meu filho amado; escutai-o”. O mistério do Enviado de Deus não
é mais reservado ao próprio Jesus; é comunicado aos que deverão
continuar sua missão. E lhes é revelado, embora não entendam (9,10; cf.
8,32-33), ou melhor, porque não entendem, pois aproxima-se o momento em
que eles deverão enfrentar o escândalo da cruz. Por isso, por uma
frestinha, podem enxergar pedacinho do céu. E gostam: “Façamos aqui
três tendas…”, diz Pedro. Porém, “ele não sabia o que estava dizendo”
(9,6). Pois Jesus não podia ficar onde estavam. Devia caminhar. Não há
glória sem cruz, não há Páscoa sem Semana Santa (cf. 9,12b).
Muitos gostariam de que existisse Páscoa sem Semana Santa. Um Jesus
festivo, jovem, simpático, com olhos românticos; ou até com ar de
revolucionário, mas não um Jesus esmagado e aniquilado! Mc, porém, e
também a liturgia, situam a visão da glória na perspectiva da cruz, no
inicio do caminho que conduz ao Gólgota, logo depois do convite aos
discípulos de assumirem sua cruz no seguimento de Jesus (8,34).
Aprendemos hoje que não devemos construir as “tendas eternas” antes da
hora. Jesus deve caminhar ainda, e nós também. Mas, entretanto,
precisamos de uma “pré-visão” de sua glória, para, na noite do
sofrimento, enxergar o sentido final, que se revela nestas breves
palavras: “Este é meu filho amado..,”. Deus quer mostrar-nos que o
mistério que nos salva é sua própria doação por nós, na morte de seu
Filho. E o que nos explica Paulo, na 2ª leitura: “Não poupou seu
próprio filho”. E, para que nos sensibilizemos do que significam estas
palavras, a 1ª leitura nos lembra o conflito que explodiu na alma de
Abraão, quando Javé lhe exigiu seu querido e único filho em sacrifício.
O filho que encarnava a promessa de descendência. O filho em quem
estava toda a sua vida. Concretamente: Jesus era o homem que
interpretava, ensinava e vivia de modo perfeito a vontade de Deus.
Qualquer um de nós diria: “Este homem vale ouro, devemos dar-lhe todas
as chances; não o podemos queimar; devemos protegê-lo, promovê-lo”.
Deus não. Deus sabe que o coração humano é orgulhoso e só cai em si
depois de ter destruído sua própria felicidade. Deus sabe que os homens
só se convertem “elevando os olhos para aquele que traspassaram” (Zc
12,10). A sede do poder, a agressividade, só reconhece seu vazio depois
de ter esmagado o justo que a ela se opõe. Deus quer pagar este preço
para conquistar o coração do ser humano. O Filho que ele envolve com
sua glória, e que recebe o testemunho da Lei e dos Profetas (Moisés e
Elias), Deus não o poupou, pois era preciso que se realizasse sua
oferta de amor até o fim. Eis o risco que Deus quis correr.
Mas não aboliu Deus os sacrifícios humanos desde Abraão, impedindo,
no último momento, o sacrifício de Isaac e contentando-se com um
carneiro? Deus pôs fim aos sacrifícios em que homens oferecem outros
homens. Mas, em seu Filho, ele mesmo quis sofrer, para nos ganhar com
seu amor. Ele mesmo quis viver o amor até o fim, porque o Filho era,
como se diz em termos humanos, o “amado” – uma parte de si, o único que
encarnava plenamente sua vontade salvífica, o único verdadeiramente
obediente, completamente dado ao plano do Pai. Nele Deus “se perdeu” a
si mesmo em seu amor por nós…
“Escutai-o”. Os ensinamentos de Jesus, que agora seguirão, são os
ensinamentos sobre a humildade, o despojamento, o serviço, a doação em
prol dos “muitos” (10,45). Só podemos aceitar este ensinamento na
confiança de que “ele teve razão” quando deu sua vida por nós. E isto
que a liturgia de hoje, antecipadamente, nos deixa entrever.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
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