A vontade de Deus e o “Pão da Vida”
A liturgia de hoje é estruturada pela oposição tipológica entre o maná, o“pão do céu” do A.T. (tipo), e Jesus, o verdadeiro “pão do céu” do N.T. (antítipo), explicitação daquilo que significa o “sinal do pão” (cf. dom pass.). Como maná do A.T., também o pão multiplicado era apenas material, e quem o procura por seu valor material está perdendo o mais importante: neste ponto começa o evangelho de hoje.
Depois da multiplicação dos pães, vendo que o povo o entendera mal (6, 14-15) Jesus se tinha retirado para a montanha, sozinho, enquanto os discípulos atravessaram o lago. O povo tinha observado isso. Procuraram então Jesus perto do lugar onde tinha realizado o milagre, mas, não o encontrando, voltaram a Cafarnaum, em outros barcos (6,22-24). E aí encontraram Jesus (que tinha atravessado o lago andando sobre as ondas). Admiram sua presença, mas com a mesma superficialidade que os levou a ver no sinal do pão não um sinal, mas apenas a satisfação de sua fome: é o que Jesus lhes repreende (6,26).
Inicia então um diálogo, em que o pessoal de Cafarnaum aparece como preocupado com a Lei, mas obtuso quanto à realidade de Deus. Perguntam o que devem fazer. Jesus lhes diz que a obra do Pai é que acreditem no Filho (10 6,28)! Então, pedem um sinal como o de Moisés (o maná). Jesus responde que o sinal não era de Moisés (relativização do sistema mosaico, do qual eles são os árduos defensores contra os cristãos, expulsos da sinagoga), mas de Deus. Este mesmo Deus dá agora mais do que um sinal; oferece a plenitude de sua obra: seu enviado, Jesus Cristo, que faz o homem viver verdadeiramente, por sua palavra.
A 1ª leitura lembra o que é o maná: 1) um pão material e perecível (leia Ex 16,19-30, as regras de recolhimento diário e conservação do maná); 2) uma coisa dada por intermédio de Moisés (conforme Jo 6,32, os judeus parecem ter esquecido que Moisés fora apenas o intermediário); 3) algo que não se sabe o que é, pois o nome que lhe deram, “maná”, significa “Que é isso?” A isso, o evangelho opõe o pão do N.T.: 1) uma comida que não perece, mas que permanece para a vida eterna (6,27); 2) uma obra de Deus mesmo (6,32); 3) uma realidade bem determinada: é Jesus em pessoa, acolhido na fé (6,35).
Esse contraste é acentuado pelo salmo responsorial, que evoca a maravilha do pão que Deus “fez chover do céu” (o texto que os judeus citam para Jesus: Jo 6,31 = Sl 78[77],24), enquanto a aclamação ao evangelho opõe a isso a realidade que se manifesta no N. T.; não só de pão é que se vive, mas, antes de tudo, da “palavra” que vem da boca do Altíssimo.
Entre os dois painéis dessa tipologia antitética fica prensada a 2ª leitura. Fala também da oposição entre o antigo e o novo. O antigo, aí, não é tanto o sistema da Lei judaica, mas o paganismo, do qual provém boa parte dos cristãos de Éfeso. Os pagãos não procuravam “obras de Deus” ultrapassadas, como os judeus. Simplesmente eram dirigidos por concupiscências. Seja como for, tanto o judeu apegado ao sistema mosaico quanto o pagão envolvido com ídolos falsos (e esse pagão vive no meio de nós) devem abrir o ouvido para Cristo, a palavra da verdade que vem de Deus.
A audiência dada a Cristo é que faz viver verdadeiramente: esta é a mensagem de hoje. Por isso, Jesus é chamado “o Pão da Vida”. Concretamente, temos em nós o judeu de Cafarnaum e o pagão de Éfeso; o homem que quer ficar em dia com mediante determinadas práticas religiosas e o ateu prático, que decide na vida tudo conforme seu proveito imediato. Nem uma nem outra coisa serve para realizar o sentido eterno de nossa vida. Não devemos querer ter a última palavra, mas entregar-nos àquele que traz o selo de garantia de Deus (10 6,27). Arriscar o caminho da vida que ele nos mostra em sua própria pessoa. Pois ele não apenas ensina, ele é palavra, fala por sua maneira de ser. Jesus não ensina “coisas”, mas se apresenta a nós, e na medida em que temos comunhão com ele, imbuindo-nos de seu modo de ser, de seu espírito, vivemos realmente. Isso se manifestará na doação sem restrição, da qual ele nos deu o exemplo. A vida verdadeira, que não perece, é a vida dada como ele a deu.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
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