A quem iríamos, senão a Jesus?
“Comer e beber minha carne e meu sangue” (evangelho) são “palavras duras”, não só por sua significação teológica, mas também por suas conseqüências: implicam em aceitar Jesus sacrificado como alimento, recurso fundamental, de nossa vida. Isso era duro para os que puseram sua esperança num messias político-nacional. Exatamente porque pensavam em categorias “carnais”, não podiam aceitar um messias que viesse numa “carne” humilde e aniquilada, um messias alheio aos sonhos teocráticos deles. Menos ainda poderiam aceitar que esta “carne” fosse a manifestação da “glória” (6,62). Se esta é a glória de Deus… não precisam dela. Contudo: “A Palavra tomou-se carne e nós contemplamos sua glória” (1,14). A glória do Cristo é a cruz: nela, ele atrai a si todos os que se deixam atrair pelo Pai (cf. 12,32; 6,44).Mas, também para nós, as palavras do Cristo são difíceis de aceitar. Sua “carne” é bastante incompatível com nossa sede de sucesso. Sua “glória”, por outro lado, a confundimos com a visibilidade efêmera do espetáculo religioso. Somos incapazes de imaginar a “subida” ao Pai daquele que viveu a condição de nossa carne até seus mais profundos abismos. Será que já imaginamos alguma vez um destes homens sofridos, quebrados, anti-higiênicos, porém radicalmente autênticos e bons que vivem em nosso redor como sendo o nosso “senhor”? Talvez consigamos ter pena de tais homens, mas admirá-los e tomá-los como guia de nossa vida … A glória é ainda mais escandalosa do que a carne.
Não adianta. Com categorias “carnais”, humanas, não chegamos a essa outra visão sobre a “carne” da Palavra. A “carne” não resolve. Precisamos de um impulso que venha de fora de nós. O “espírito”, a força operante, a inteligência atuante de Deus, nos levará a acolher o mistério do escravo glorificado. Jesus mesmo nos transmite esse espírito (10 3,34), e sua “exaltação” é a fonte desse dom (7,39). Suas palavras são “espírito e vida” – espírito da vida (6,68; cf. 6,63). Só entregando-nos à sua palavra (isto é, aplicando-a em nossa vida), poderemos experimentar que ele é fidedigno. Ou seja, o “espírito” que há de superar o que nossas categorias demasiadamente humanas recusam vem do próprio “objeto” de nosso escândalo. Não é como conclusão de um teorema que seu espírito penetra em nós, mas como conseqüência de uma arriscada decisão e opção. É essa opção que Pedro pronuncia, vendo a insuficiência de qualquer outra solução: “A quem iríamos … “.
A 1ª leitura ilustra o caráter de tal opção pelo exemplo de Josué: a escolha que Josué apresenta aos israelitas do séc. XII a.c. (entre Javé, que os libertou do Egito, e os deuses da Mesopotâmia, supostos fornecedores de fecundidade etc.), escolha que os autores bíblicos apresentam a seus contemporâneos, no tempo da ameaça assíria e da deturpação da fé pelos cultos dos baalim (10). A escolha entre um Deus que provou seu amor e fidelidade e deuses que devem sua “existência” aos mitos que os homens criam em redor deles. Essa opção se apresenta a nós também: optaremos por aquele que “deu a vida”, em todos os sentidos, ou pelos ídolos pelos quais tão facilmente damos nossa vida, sem deles recebermos a gratificação que prometem: sucesso, riqueza, poder.
A 2ª leitura de hoje é muito rica, mas não combina com as duas outras. Porém, por ser sua mensagem tão importante, sobretudo num tempo em que o caráter santificante do amor conjugal e familiar é praticamente desconsiderado, seria bom reservar na liturgia um momento à parte para proporcionar também esta mensagem aos fiéis, talvez no envio final, como uma das maneiras para encarnar a opção por aquele que tem as palavras da vida eterna …
(10). Para bem entendermos o trecho, ajuda o conhecimento de sua origem literária. Faz parte da “historiografia deuteronomista”, ou seja, da história de Israel escrita em função do movimento profético dos séculos VII e VI a.c. (que promoveu também o livro do Dt). Este movimento denunciava com força o perigo do comprometimento de Israel com os deuses e os príncipes das antigas populações cananéias e estrangeiras.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
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